Zélia e Jorge

Entre julho de 2016 e julho de 2017 comemoramos o centenário de Zélia Gattai, e nós da Nossa Companhia nos sentimos impelidos a homenagear essa mulher, que foi muito mais que companheira e braço direito de Jorge Amado. A efeméride que marca seu nascimento foi o ponto de partida para iniciarmos a pesquisa sobre sua vida e obra repleta de inspirações. Foi fotógrafa, mãe, avó, memorialista, militante, e principalmente uma contadora de histórias, como ela mesmo gostava de se chamar.

Em tempos áridos, se faz necessário falar de garra, sonhos e amor. Zelia, ao lado de Jorge, foram grandes defensores do Estado Laico, das liberdades religiosas, da positividade da miscigenação e movidos pela utopia de pensar e reinventar o Brasil, Zélia e Jorge, viviam seus ideais independente da militância política.

Nessa singela homenagem, estamos fazendo um pequeno recorte da vida deles, sob o olhar delicado de Zélia e levando ao palco, para que todo mundo possa entrar em contato com essas figuras ímpares que são Zélia Gattai e Jorge Amado.

A história de amor entre Zélia Gattai e Jorge Amado nos serviu como veículo para reflexão da memória como ferramenta de resgate da identidade de um povo, que Zélia usava como matéria prima e desejamos que também seja a nossa.

O casal protagonista era central em um grupo de intelectuais, artistas, operários, empregados e todo tipo de órfãos de um ideal esfacelado pela trajetória da falecida União Soviética. Ainda hoje, ao visitarmos a casa do Rio Vermelho, podemos ouvir nas paredes e artefatos as vozes das alegres conversas e reuniões em que a jocosidade e tristeza se entrelaçavam. Ninguém deixava de ser criticado ou elogiado, de Josef Stalin ao antagonista de Jorge, Gilberto Freyre. O que estava na roda era o ideal de vida de um grupo. Somam-se a eles os fãs do grande escritor, que através de telefonemas recorriam aos Gattai\Amado pedindo desde empregos, doação de linha telefônica, aos novidadosos aparelhos eletrônicos. É com o olhar desse grupo que tentaremos espiar a história, seus meandros, choques, as fofocas, o impacto sobre a vida comezinha daqueles grandes que eram tão pequenos quanto todos que viveram o período. A exceção é que eles tinham esperança, sempre tiveram.


Jorge Amado é famoso pelas obras que escreveu sobre as intimidades de um povo, as crônicas cheias de segredo desse, seus desejos inconfessados, ou melhor, geralmente confessados. Mas é o personagem Jorge Amado, criado por Zélia que vamos conhecer. É o olhar de Zélia que mais nos interessa, a memorialista nos conduzirá pela investigação sobre quem somos enquanto seres culturais formados nesses trópicos e sertões que chamamos de “Brasil”, o que deve ser valorizado em nossa constituição única, aquela que seduz estrangeiros desde o início, como o prático Pero Vaz de Caminha na chamada carta de “descobrimento do Brasil”, vista como documento tanto quanto poesia, ou pensadores como Montaigne em seu ensaio sobre os índios tupinambás, “Dos Canibais”. É nosso desejo íntimo, daquele tipo que Jorge denunciava em sua obra, pensarmos sobre essa nossa constituição, lá fora nos admiram, aqui nos estranhamos, não entendemos as cores que nos tingem, falamos com a mão na boca para esconder nossos dentes. Nossa constituição, a cultural, a física, o estatuto das leis federais, não se contém apenas nas notas do Hino Nacional. Ao olharmos através dos olhos de Zélia para Jorge, com o amor que isso desperta em todos os agentes envolvidos, podemos perceber a vida no Brasil além da obra desse escritor, o mesmo que retira nossa mão da boca para podermos falar livremente e com orgulho sobre quem somos. Esse casal humanista, muito além dos partidarismos, carrega o poético sonho de justiça social. Em tempos como o nosso, nada melhor que olhar para trás.

Ficha Técnica “Zélia e Jorge”
Direção: Núcleo Alvenaria
Elenco: Alexandra DaMatta
Bia Toledo
Everson Romito
Rodrigo Dal Zot
Tati Bueno
Dramaturgia: Núcleo Alvenaria
Revisão de Dramaturgia: Lucas Lassen
Cenário e Figurino: Núcleo Alvenaria
Trilha Sonora: Bibi Cavalcante
Iluminação: Tati Bueno
Designer Gráfico: Adriana Alves
Produção: Clube do Mecenas


Carta gentilmente enviada por Camila Veiga, neta de Zélia Gattai e Jorge Amado.

A sensibilidade e a verdade com que se conta a história da escritora Zélia Gattai na peça Zélia e Jorge, talvez sejam os pontos altos desse lindo projeto. Cenários e figurinos simples mas que traduzem cultura, emoção, partes do cotidiano do casal, momentos importantes da história da escritora que se fundem à história do Brasil e do mundo numa época onde ter esperança era o único caminho.

E falar da estrela que sempre acompanhou Zélia… e falar de seu primeiro filho Luiz Carlos com tanto cuidado… e falar do amor absoluto e entregue de Zélia por Jorge, de Zélia pela vida… Uma mulher forte, obstinada… Falar de Zélia através de três diferentes vozes, todas Zélia, todas com a mesma paixão… Assim fazem atrizes e atores com muito talento. Humor, amor, amizade, coragem, às vezes medo, às vezes lágrimas, mas sempre amor… Temperos que fizeram parte da vida da escritora e que estavam ali no palco contados e vividos com delicadeza tamanha… com muita competência.  

Particularmente me senti muito lisonjeada, em nome de minha avó Zélia, meu pai Luiz Carlos, meu avô do coração Jorge. Foi uma noite de reencontros emocionantes. Apoio o projeto e torço para que como este, tantos outros sobre outros tantos que fizeram a diferença possam ser realizados, porque pessoas como meus avós que acreditaram em um ideal e por ele viveram e lutaram apesar de dramas pessoais precisam estar vivos na memória para servirem de referência às gerações que vêm por aí, para nos lembrar do amor, das possibilidades que a vida sempre oferece, da esperança: de que o mundo possa ser melhor.

Camila Veiga