Humanamente Inviável é a nova criação do Núcleo Alvenaria de Teatro, escrita e dirigida por Tati Bueno. Ambientada em um bar à beira do fim do mundo, a peça apresenta personagens que, entre uma saideira e outra, tentam desabafar diante de um colapso que não é futuro — é agora.
Aqui, o apocalipse não chega com estrondo: ele se manifesta em silêncio, cansaço e distração.
Uma tragicomédia distópica sobre tentar e tentar de novo, mesmo quando já não se acredita.
Alexandra interpreta Vera, uma mulher que tenta encontrar sentido em meio ao cansaço emocional de um mundo em colapso, oscilando entre cuidado, lucidez e a fossa que insiste em acompanhar o Brasil. Já Norma é a força que se debate contra as próprias contradições — feminista, exausta, intensamente humana — alguém que luta para ser ouvida enquanto tenta não desabar. Duas faces de uma mesma urgência: existir apesar do caos.
Bia dá vida à Madame, figura carismática, irônica e profundamente sensível, que canta a fossa brasileira enquanto tenta driblar os próprios abismos. Em Alicinha, ela encarna o paradoxo da autoajuda em crise: uma mulher que acredita no método, repete mantras para sobreviver ao cotidiano e tenta reorganizar o mundo ao seu redor — inclusive quando tudo desmorona. Entre elas, Bia transita do humor à vulnerabilidade com precisão afiada.
Thiago interpreta três forças fundamentais da narrativa: Dominique, o palestrante ansioso por ser ouvido, preso entre a teoria e o caos; Mário, o homem em “desconstrução” — ou na promessa dela — que revela os vícios e estruturas que o método tenta combater; e Poetinha, alma sensível que usa música e poesia para resistir ao vazio. Juntos, esses personagens mostram diferentes maneiras de falhar, tentar e continuar.
“O trabalho do elenco – Bia Toledo, Alexandra DaMatta e Thiago Carreira – se destaca pela transição precisa entre o discurso e o desvario. Os corpos ocupam o espaço com ironia e desalento, movendo-se como quem busca um equilíbrio impossível entre a lucidez e o cansaço.”
Bob Sousa
Livremente inspirado em dois fatos reais — o episódio narrado por Rebecca Solnit no livro Os Homens Explicam Tudo Para Mim* e a experiência de cursos obrigatórios para homens processados por violência doméstica** —, Humanamente Inviável mistura humor ácido, crítica social e camadas de ficção distópica.
A narrativa se divide em dois planos: no “terreno”, acompanhamos Alicinha, criadora de uma clínica que promete reeducar homens, e seu marido Mário, um machista em eterna “desconstrução”. Com eles, Norma e Dominique se desdobram para provar que o método funciona e, assim, renovar o contrato com o governo. No “mítico”, três entidades — Madame, Vera e o Poetinha — ocupam o bar no fim do mundo, observando e comentando os destinos humanos, entre sambas de fossa e confissões íntimas.
“Esperávamos um fim do mundo que chegasse como um estrondo, mas, na verdade, ele está vindo a conta-gotas. E, enquanto esperamos, precisamos lidar com o vício em dopamina, o celular como extensão do corpo, a falência dos afetos e as velhas disputas de gênero”, afirma Tati Bueno.
*Em uma festa, a escritora Rebecca Solnit viveu uma cena comum: um homem lhe explicou longamente um livro — sem perceber que era ela a autora. O episódio deu origem ao livro Os Homens Explicam Tudo para Mim, que nomeia e analisa o fenômeno do mansplaining. Solnit revela como esse gesto cotidiano de silenciamento reflete uma cultura machista que insiste em desautorizar as mulheres.
**A Lei 13.984/2020 determina que agressores de violência doméstica frequentem cursos de reeducação e acompanhamento psicossocial. Essas medidas podem ser aplicadas pelo juiz logo no início do processo, mesmo sem condenação. O objetivo é estimular reflexão e responsabilização, rompendo padrões machistas que sustentam a violência. Assim, busca-se reduzir a reincidência e fortalecer a proteção às vítimas.
“A direção de Tati Bueno aposta em uma encenação que dissolve fronteiras, fazendo da cena um organismo vivo, em constante mutação.”
Em Humanamente Inviável, o Núcleo Alvenaria de Teatro constrói uma narrativa visual que se equilibra entre o grotesco e o poético, entre o riso que dói e o silêncio que corrói. A direção de Tati Bueno aposta em uma encenação que dissolve fronteiras, fazendo da cena um organismo vivo, em constante mutação. O bar à beira do fim do mundo, espaço simbólico e terreno, é um território em ruína que se transforma em clínica, cabaré, auditório e laboratório. Cada metamorfose revela camadas da falência contemporânea: o corpo exausto, o afeto automatizado, a tentativa vã de corrigir o humano. A visualidade nasce dessa instabilidade, sustentada por uma dramaturgia fragmentada que recusa a linearidade e prefere a sobreposição de planos, sons e atmosferas.
A iluminação de Samya Peruch e Tati Bueno desempenha papel decisivo nesse jogo. Ela recorta, dilui e reconfigura os espaços, sugerindo o trânsito entre o real e o delírio. O figurino de Uga Agú, concebido como extensão das identidades instáveis, acentua o caráter performativo da existência, em que o vestir-se é também um ato de invenção e de sobrevivência. Os figurinos combinam elementos esportivos com peças clássicas, criando uma visualidade que reflete o esgotamento e a confusão identitária do tempo presente. Essa mistura de trajes de treino com cortes elegantes traduz o esforço de manter a aparência de normalidade em meio ao colapso, como se os corpos precisassem estar prontos tanto para a luta quanto para o espetáculo. A trilha sonora de Felipe Antunes e o desenho sonoro de Cecília Lüzs compõem uma tessitura sensorial que atravessa toda a encenação, dando corpo às emoções que habitam o colapso. A música surge como elemento narrativo, ora sustentando o lirismo das cenas, ora acentuando o tom irônico e trágico do texto. Antunes evoca o samba de fossa, o bolero e as canções populares brasileiras para criar um ambiente de melancolia urbana, enquanto o trabalho de Cecília Lüzs insere ruídos, respiros e distorções que ampliam a sensação de desajuste. O resultado é um diálogo constante entre o som e a cena, em que o silêncio tem peso de palavra e a música se torna memória afetiva de um país que tenta, entre a dor e o humor, ainda se escutar.
O trabalho do elenco - Bia Toledo, Alexandra DaMatta e Thiago Carreira - se destaca pela transição precisa entre o discurso e o desvario. Os corpos ocupam o espaço com ironia e desalento, movendo-se como quem busca um equilíbrio impossível entre a lucidez e o cansaço. O resultado é uma cena que tensiona o olhar do espectador, convidando-o a enxergar o colapso cotidiano que se disfarça de normalidade.
Na obra, a ideia da última geração analógica surge como uma presença melancólica e resistente, tentando preservar a concentração em meio ao turbilhão de estímulos digitais. Esses corpos, que aprenderam a esperar o tempo da escuta e da pausa, enfrentam agora a vertigem do fluxo contínuo de informações e notificações. A encenação dá forma a essa tensão por meio de silêncios prolongados e olhares que buscam foco enquanto o mundo vibra em distração. É como se essa geração tentasse, cada cena, respirar em um tempo que já não pertence a ela, sustentando um fio tênue de atenção como último gesto de humanidade diante do colapso da presença.
O texto se ancora de modo incisivo nas tensões da contemporaneidade, atravessando temas como o feminismo, a linguagem neutra e a masculinidade tóxica sem recorrer a discursos panfletários. Tati Bueno constrói uma dramaturgia que expõe o desgaste das relações de gênero e a falência dos afetos sob o peso das velhas estruturas patriarcais. A linguagem neutra aparece como tentativa de criar um novo campo simbólico, um espaço de fala que escapa às imposições normativas do masculino, enquanto os personagens masculinos, presos a uma falsa desconstrução, revelam o abismo entre o discurso e a prática. O resultado é um texto que reflete o presente com agudeza e ironia, revelando como o colapso não é apenas tecnológico ou ambiental, mas também ético, emocional e linguístico.
Encenado no elegantíssimo Alvenaria Espaço Cultural, o espetáculo ganha uma dimensão ainda mais intensa, pois o próprio ambiente reforça o caráter híbrido e experimental da obra. O espaço, com sua arquitetura que combina o rústico e o sofisticado, acolhe a proposta de um teatro que se constrói em ruína, em constante reinvenção. A proximidade entre artistas e público cria um campo de afetação direta, em que cada gesto e cada som reverberam de forma íntima. Nesse cenário, a encenação não apenas ocupa o Alvenaria, mas o transforma em extensão de sua dramaturgia: um território onde a elegância convive com o cansaço, o colapso se converte em beleza e a cena se afirma como último refúgio da sensibilidade.
Em Humanamente Inviável, o dilema com a função da arte se manifesta como uma ferida exposta. A própria encenação questiona o sentido de criar em meio ao esgotamento coletivo, perguntando se o gesto artístico ainda pode provocar transformação ou se se tornou apenas mais um ruído no caos. O espetáculo reflete sobre a arte como tentativa desesperada de reconstruir vínculos e imaginar saídas em um mundo saturado de discursos e vazio de escuta. Entre a ironia e a melancolia, o Núcleo Alvenaria parece afirmar que o papel da arte talvez não seja mais oferecer respostas, mas insistir no ato de olhar, de sentir e de nomear o que ainda pulsa. Nesse impasse, a arte se reafirma como resistência, mesmo quando parece humanamente inviável.
Encerrando a Trilogia Madame, Humanamente Inviável projeta no presente o esgotamento de um tempo histórico e emocional. Sua narrativa visual não se limita a ilustrar o apocalipse, mas o encena como condição permanente: uma fossa iluminada por telas, uma ruína que ainda pulsa. O espetáculo reafirma a potência do Núcleo Alvenaria de Teatro em articular crítica e sensibilidade, mostrando que, mesmo em meio ao colapso, o gesto de tentar continua sendo profundamente necessário.
Bob Sousa é fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
A iluminação de Samya Peruch e Tati Bueno é o eixo que molda a paisagem emocional de Humanamente Inviável. A luz recorta e desfaz contornos, deslocando a cena entre o real e o delírio. Em alguns momentos, acompanha a delicadeza das confissões; em outros, mergulha o espaço em cortes abruptos que revelam a falência afetiva contemporânea. Ela reorganiza o olhar do público, conduzindo a experiência como uma respiração oscilante entre intimidade, vertigem e ruína.
O figurino criado por Uga Agú traduz visualmente as identidades instáveis que habitam o espetáculo. A mistura de peças esportivas com elementos clássicos cria uma estética de desgaste e performance, como se os corpos precisassem estar sempre prontos para resistir, para agir ou simplesmente para sobreviver. Essa combinação revela a tentativa de manter uma aparência de normalidade em meio ao colapso — um vestir-se que é também gesto de invenção, defesa e improviso diante do caos.
A trilha sonora de Felipe Antunes e o desenho sonoro de Cecília Lüzs percorrem a encenação como camadas afetivas que expandem o espaço e a palavra. A música dialoga com a tradição da fossa brasileira — sambas-canção urbanos, boleros e melodias que carregam a melancolia do país — enquanto as vozes dos intérpretes surgem como confidências entre riso e desalento. O som, por sua vez, incorpora ruídos, silêncios e distorções que intensificam a sensação de desajuste. Juntos, música e som criam um ambiente sensorial que pulsa e se desmancha, acompanhando a trajetória dos personagens no seu próprio fim do mundo.
A Trilogia Madame é um projeto cênico do Núcleo Alvenaria que investiga, ao longo de três espetáculos, as tensões entre corpo, política, afeto e sobrevivência em um Brasil em colapso. Criada entre 2021 e 2025, a trilogia reúne obras que se relacionam poeticamente, não por continuidade narrativa, mas por um eixo comum: a presença da figura “Madame” como mediadora entre mundos, testemunha do desmoronamento e guardiã de uma sensibilidade à beira da ruína.
Segundo capítulo, Codinome Madame imagina um Brasil distópico governado por um regime extremista que proibiu a arte. A narrativa acompanha artistas clandestinos que resistem através da palavra, revisitando autores como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Esquilo e Brecht. Com forte dimensão metalinguística, a peça discute o papel da arte em tempos de censura e medo. Premiada no Festival de Teatro em Tempo Real (RJ) — Melhor Atriz e Melhor Direção — e apresentada em São Paulo, Rio de Janeiro e Tiradentes, tornou-se um marco da trajetória do Núcleo.
Primeiro capítulo da trilogia, Madame e a Faca Cega acompanha Vera, uma mulher lésbica em busca de libertação de uma relação amorosa opressora. Através de humor ácido, delírios poéticos e uma fragilidade profundamente humana, o espetáculo aborda temas como autonomia, desejo, solidão e coragem. A peça estreou online e depois em temporada presencial, deixando sua marca pela força simbólica da personagem e pela maneira como transforma intimidade em gesto político.
Encerrando a trilogia, Humanamente Inviável desloca a distopia para o presente. Desta vez, não há governos distantes nem horizontes futuros: o colapso já está aqui. Em um bar à beira do fim do mundo, personagens tentam reorganizar afetos, identidades e discursos enquanto o apocalipse se aproxima em silêncio, cansaço e distração. É o capítulo mais cotidiano e, paradoxalmente, o mais devastador — aquele em que falhar também é gesto de humanidade.
A Trilogia Madame tensiona o encontro entre o grotesco e o poético para construir um retrato afetivo de um Brasil exausto, contraditório e ainda pulsante. Ao longo das três obras, a figura de Madame atravessa ruínas íntimas e coletivas como símbolo de uma resistência sensível, insistindo em olhar o mundo mesmo quando tudo parece desabar. Entre liberdade feminina, violência estrutural, esgotamento emocional e a urgência da arte frente à censura e ao caos, a trilogia combina humor, música, crítica social e delírio para investigar a capacidade — frágil, mas vital — de continuar tentando.
Fundado em 2013, o Núcleo Alvenaria de Teatro nasceu com a proposta de investigar a sociedade por meio de criações cênicas autorais, irreverentes e profundamente conectadas ao presente. Desde a estreia com Romeu e Julieta (2014), contemplado pelo ProAC LGBT, o grupo desenvolveu montagens marcadas por pesquisa literária e experimentação, como Josefina Canta (2015), Quase uma Adaptação (2016) — vencedor do Prêmio Zé Renato e apresentado em Buenos Aires — e Casa Vazia (2018).
Em 2018, inaugurou sua sede própria, o Alvenaria Espaço Cultural, que desde então se tornou um polo de criação, circulação e encontro da cena artística independente. Nos anos seguintes, o Núcleo aprofundou sua pesquisa estética com a Trilogia Madame, que inclui Madame e a Faca Cega, Codinome Madame e Humanamente Inviável, obras que circularam por festivais e receberam prêmios como Melhor Direção e Melhor Elenco no Festival de Teatro em Tempo Real (RJ).
O grupo também realizou projetos audiovisuais, pesquisas de teatro de rua, parcerias internacionais e processos baseados na obra de autoras brasileiras, como Zélia Gattai e Lygia Fagundes Telles, resultando em Lygia Reloaded (2024).
Com mais de uma década de trajetória, o Núcleo Alvenaria segue atuando como companhia e como espaço cultural, comprometido com a criação contemporânea, o apoio à produção independente e o teatro como lugar de resistência, afeto e imaginação.
Num bar à beira do fim do mundo, quatro figuras se encontram entre a farsa e a melancolia. Alicinha, criadora de um método de reeducação de homens, Norma, ativista exausta, Dominique, o sonhador ansioso, e Mário, o “machista em desconstrução”, formam um mosaico tragicômico sobre gênero, afeto e fracasso. Entre canções, debates e tentativas de mudança, ecoa uma pergunta: o que ainda nos torna humanos?
Texto e direção: Tati Bueno
Com: Alexandra DaMatta, Bia Toledo e Thiago Carreira
Preparação de Elenco: Inês Aranha
Direção Musical: Felipe Antunes
Figurino: Ùga Agú
Cenário: Carolina Bucek
Costureira: Amanda Pilla Bruno
Adereços Ana Santos: Nega
Visagismo: Bia Toledo
Iluminação: Samya Peruchi e Tati Bueno
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto
Produção: Clube do Mecenas
Realização: Nucleo Alvenaria